Fastos, fogos, fim
Guerras órfãs?
Para além de raros especialistas, alguns políticos e certos investidores, as guerras oloniais (conquistas e abandonos incluídos) não interessam senão às famílias cujos membros masculinos nelas participaram, de livre vontade ou obrigados. Geralmente, não são guerras patrióticas. As de Portugal não foram excepção a esta realidade. Para que fossem inscritas num contexto histórico nacional, seria necessário ensiná-las nas escolas.
Quando apareceu o texto original, em francês, que agora ponho parcialmente à disposição dos leitores lusófonos actuais, intitulava-se Le Naufrage des Caravelles (O Naufrágio das Caravelas). Era um título simbólico de que me orgulhava bastante, até o saudoso almirante Teixeira da Mota me ensinar que as caravelas jamais naufragavam. Insubmersível ou não, este naviozinho mereceu, para um público estrangeiro, 21 artigos meus de vulgarização jornalística e/ou tratados mais ou menos eruditos sobre a história (poucos), a sociedade, a economia, a situação militar e – imprudentemente – o futuro. Estas 21 peças vieram à luz entre 1967 e 1975, e a obra que as reunia, só em 1979. Ocupei o tempo, de 1965 a 1975, a preparar o primeiro doutoramento de Estado em Letras dedicado à conquista de Angola e à resistência das etnias locais, desde 1845 até 1961. Convém ter em conta a quantidade de pesquisas que um doutoramento de Estado na Sorbonne representava na época, sobre um assunto ignorado em França, para o que tive de comprar centenas de livros e revistas portugueses, do meu bolso, para me mpregnar apenas da conquista de Angola. Ao todo, este mergulho na História Colonial deu lugar à publicação de dois volumes não traduzidos (Les Guerres Grises, 630 págs., e La Colonie du Minotaure, 727 págs.), que todas as editoras parisienses consultadas recusaram: pouco público, muito caro! Donde a necessidade de o autor se transformar no seu próprio editor. Para um historiador pioneiro, era isso ou o silêncio de teses que ninguém leria, ou quase. Mas voltemos a 2020-2021, pois acabei por ser o único historiador estrangeiro vivo com 8 livros traduzidos em português, prova de que esse autor serve para preencher um vazio na galeria dos livros de referência na História Colonial Portuguesa. Representa isto vários milhares de páginas com existência comercial no país-alvo. Mesmo que os excertos dados a ler a seguir façam fraca figura ao lado dos pesos-pesados que já editei sobre os dois últimos séculos em Angola, Moçambique, Guiné e Timor, eles têm um lugar entre a exaltação do Século de Ouro por alguns professores e o silêncio de outros, nas escolas primárias actuais, embora Angola e Moçambique pertençam ao que designo por Renascença Imperial Portuguesa, que acabou em 1975-1976, talvez um pouco antes.
Na minha posição de observador de olhar frio (ou quase morno), não era vergonha transformar-me numa espécie de juiz dos «príncipes» que conquistaram, exploraram, governaram e mesmo – tardiamente – desenvolveram as duas pérolas do Império, pois, neste campo de estudo, quem quiser trabalhá-lo em profundidade deve renunciar a levar a sério os preconceitos dos colonos e dos colonizados. Favorecer exclusivamente os donos é esquecer as razões dos «escravos». E o contrário é igualmente verdadeiro.
A objectividade «científica» não existe nestes tribunais autoproclamados pela opinião internacional. Isso verifica-se amplamente nas argumentações dos advogados da geração que fez a guerra colonial de 1961 a 1975, de um lado e do outro, em Angola.
Cânticos pelas exéquias do Império
Durante décadas, a censura e a autocensura baniram os textos demasiado desviantes sobre a situação em África. Depois da implosão das Forças Armadas e da derrocada do Império, a chegada de centenas de milhares de retornados, amargurados e traídos, trouxe a publicação de testemunhos que deixaram pouca margem à narrativa dos supostos esplendores que conheceram antes do seu «retorno». Poucos valorizavam a explosão económica em Angola, em 1973.
Simultaneamente, ou quase, as querelas internas no seio dos oficiais de carreira alimentaram uma outra corrente que, também ela, negligenciou o desenvolvimento, contudo visível a olho nu, nas duas grandes colónias continentais, sendo a Guiné o calcanhar de Aquiles dos defensores do statu quo.
Apareceram, pouco depois, as produções literárias de antigos combatentes, nada propensos a interpretar as estatísticas, para eles indiferentes nos quartéis do mato. A conjugação destes factores e de bastantes outros fez com que os portugueses nunca tenham tido verdadeira consciência de que, na altura de abandonarem o Império, este dava a impressão de ter atingido um louvável ciclo, o máximo do seu valor económico, pelo menos em Angola. Desenvolvimento precário, abrigado atrás de um exército corroído no seu interior. Embora falhos de originalidade, vários dos meus capítulos poderão servir para conhecer melhor este aspecto cintilante de uma economia artificial engendrada por um regime autoritário, talvez totalitário.
As minhas impressões, recolhidas essencialmente no interior de Angola, são por vezes atenuadas face ao distanciamento entre o desenvolvimento do topo da sociedade colonial e a manifesta desigualdade na base, nas sociedades africanas. Teria podido manipular os textos apresentados. Preferi deixá-los intactos, incluindo as previsões temerárias e a superficialidade de alguns desenvolvimentos. Convém também lembrar que o público ao qual estavam inicialmente destinados ignorava certos temas e, para começar, o Estado português estava exausto, suportando uma tripla guerra colonial,
quente (Guiné), morna (Moçambique) e momentaneamente arrefecida (Angola). Pior do que isso, não era uma guerra popular entre os soldados mobilizados e alguns dos seus oficiais. Poucos mortos, mas um cansaço geral. Viu-se ao que ela conduziu.
René Pélissier
30 de Setembro de 2021
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