Africana studia nº 36 - Desporto e Poder em África

 

Índice

  • Editorial (pág.5)
  • O enquadramento político do desporto
    • Miguel Natchulo Cassinda - A política desportiva na República Popular de Angola: uma breve análise histórica (1975-1991) (pág. 11)
    • Mauro Armando Adelino Manhanguele e Marlino Eugénio Mubai - Desporto e construção da sociedade nova em Moçambique, 1974-1990 (pág. 25)
    • Joseph Woudammiké - Sport, patriotisme et récupération politique au Cameroun à travers deux figures emblématiques du rayonnement sportif féminin: le cas de Françoise Mbango et de Sarah Etongué (pág. 39)
    • Thibaut Dubarry - Mandela, le renard, le lion et la gazelle. Une illustration du pouvoir du sport dans l’édification d’une nation plurielle mais unie au prisme des Springboks face au nouvel ordre mondial (pág. 53)
  • Clubes e atletas em sociedades africanas
    • Augusto Nascimento - A (des)organização social e indisciplina no futebol do São Tomé e Príncipe independente (pág. 73)
    • Aurélio Rocha - Associativismo, Desporto e Identidade em Moçambique (décadas de 1920 a 1950) (pág. 93)
    • Pedro António Pessula e Bernardo Manjate - Percurso de vida dos ex-jogadores do Clube Desportivo Matchedje de Maputo (pág. 109)
    • Bonomar Adriano Macuácua - O neoliberalismo e as migrações de trabalho desportivo em Moçambique (pág. 123)
    • Hervé Kouamouo - Être un big man dans le sport, une enquête sur le football auto-organisé en diaspora (pág. 139)
  • Entrevistas
    • Joel Libombo (pág. 149)
    • Altenor Pereira (pág. 157)
  • África em Debate - poderes e Identidades
    • Michel Cahen - Renamo: de la défaite à la survie? (pág. 165)
  • Notas de Leitura
    • René Pélissier - Matériaux et/ou modèles pour une hypothétique «História Geral de Angola» (pág. 191)
  • Resumos (pág. 199)
  • Legenda das ilustrações (pág. 208)

 

Editorial

A exemplo da Africana Studia n.º 34, também este número se compõe de textos apresentados no V Encontro Internacional sobre Desporto e Lazer em África, sob o lema “Vivências coloniais e dinâmicas nacionais”, organizado pela Faculdade de Letras e Ciências Sociais, com a colaboração da Escola Superior de Ciências do Desporto, da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, de 8 e 9 de novembro de 2018. A estes textos juntaram-se os de outros investigadores da rede Desporto e Lazer em África1 e, ainda, de investigadores de outros países africanos. Todavia, neste volume da Africana Studia ainda merece realce Moçambique, cuja evolução desportiva é indiciariamente abordada em duas entrevistas a atores locais2. Da recente produção sobre desporto no país, cabe mencionar os trabalhos biográficos e de divulgação de histórias do desporto – por exemplo, de Oliveira3, Roletta4, Caldeira5, para além do trabalho de Graziano, Pessula e Tembe6, de Pereira e Gonzalez7 e, obviamente, de Domingos8.
Os textos da primeira parte do dossiê da revista, intitulada O enquadramento político do desporto, fazem incursões no domínio da relação entre política e o desporto nas antigas colónias portuguesas, após as independências tornadas países ditos socialistas ou a caminho do socialismo, e, também, nos Camarões e África do Sul.
Por regra, após as independências das antigas colónias portugueses, os governantes assestaram críticas ao elitismo do desporto no tempo colonial, a que contrapuseram o desporto de massas.
Em Angola, conforme Miguel Cassinda, os dirigentes pretenderam atingir a massificação do desporto em todo o território, até para fomentar a unidade nacional. A concretização de tal política quedou-se muitíssimo aquém das intenções, para o que em Angola, como em Moçambique, se poderia citar a guerra como explicação.
Não cabe aqui a indagação das múltiplas motivações da pretensa massificação do desporto. Mas cabe lembrar que, como outros objetivos políticos, também os subjacentes à massificação do desporto podiam ser desmentidos pela realidade. Tendo como possível desiderato a projeção dos países com base nas performances dos seus desportistas, ponderava-se que sem massificação não se lograriam talentos nem medalhas. Ora, dada a especialização das técnicas desportivas, não era forçoso que da massificação brotassem valores de nível internacional. Independentemente da convicção de senso comum de que do amplo número de praticantes se obteria um maior número de praticantes de elite e de êxitos internacionais, o desporto de elite e o de massas não constituíam um sistema de vasos comunicantes. Ademais, mesmo se inconfessada, lavraria a convicção de que os ganhos políticos decorriam, não do desporto de massas, mas da identificação popular com as vitórias. Na verdade, para além de ideias vagas acerca do papel de cimento político e social da disseminação do desporto, os dirigentes estavam interessados na projeção dos seus países através da competição de elite e nos dividendos daí resultantes no tocante à legitimação do poder, dividendos que, embora marginais, não seriam completamente despiciendos.
Aventemo-lo, sobrepujando a ideologia erigida em verdade indisputada, o desporto costurava mais a unidade nacional do que as palavras dos políticos, como se percebeu, por exemplo, aquando dos triunfos de Angola no basquetebol africano. Na realidade, as convicções ideológicas acerca do desporto de massas já iam bem longe e apostava-se então no triunfo nas competições internacionais por conta de um desempenho altamente diferenciado.
Para Moçambique, Marlino Mubai e Mauro Manhanguele descrevem as intenções políticas do pós-independência, traduzidas em medidas contra os desportos de elite e o profissionalismo.
Notemo-lo, tais decisões contribuíam para erigir o “homem novo”, para quem o desporto seria uma forma privilegiada de lazer. O tónus moral e, mais importante do que admitido, emocional
necessário à sociedade deveria ser encontrado na prática desportiva, não a competitiva e alienada, mas na dos indivíduos comuns, tornando, assim, a prática desportiva objeto de politização.
Repise-se, a massificação do desporto terá sido mais propalada do que concretizada. Promoveram-se alterações na estrutura desportiva, de impacto menor ou pouco duradouro. Desse processo, a memória retém pequenos casos porque ligados à afeição que rodeia o futebol. Para os dirigentes revolucionários eram intoleráveis as referências ao passado, mormente os nomes de clubes de ressonância colonial. Nalguns casos, mesmo se dissimulada, e a ser assim caracterizada tanto em razão da importância do objeto da dissensão – um mero nome ou símbolo de um clube de futebol –, quanto do peso da discricionariedade nos regimes pós-independência, a resistência não foi menor9.
Aventemo-lo, para a rigidez política, eram inaceitáveis as referências que, ligando as pessoas ao mundo, relativizassem a influência da monolítica ideologia vigente. A título de hipótese, a razão para vituperar a alienação não derivaria da suspeita de que a afetividade de outrora – já sem sentido aparente porque destroçada pelo fim do colonialismo – pesava mais do que as novas lealdades? Os autores referem que as pessoas acompanham até hoje o futebol português. Acrescente-se que, para além de acompanharem o futebol português, hoje acompanham o futebol em todo o mundo.
Não é apenas o futebol a mover a paixão, de repente dirigida para o inédito e para a singularidade. Com a descrição do percurso de duas atletas ímpares nos Camarões, uma bicampeã olímpica de triplo salto e a repetidamente vencedora da popular subida ao Mont Cameroun, Joseph Woudammiké aborda o já debatido do aproveitamento político dos sucessos de figuras desportivas. Não se duvida do papel de cimento social do desporto, de que um dos melhores indicadores é a associação das marcas comerciais de bens de consumo massivo e lúdico10 aos feitos e aos heróis desportivos. Que o desporto, linguagem universal, tenha substituído qualquer das ideologias, em tempos ditas africanas, assim suscitando a tentativa do seu aproveitamento político, não se duvida. Do que cumpre duvidar é de que o esforço e a capacidade dos políticos se ativesse à mobilização do desporto para a construção da nação (por vezes, lembrada como possibilidade a posteriori para efeito de composição de uma narrativa de “luta” ou do que efetivamente se intentara através de políticas de coesão e equidade, não raro sem grandes resultados). Por regra, o que os políticos fazem é correr atrás dos dividendos advindos dos feitos desportivos.
O percurso das duas camaronesas mostra a diversidade do mundo, pouco conforme a ideologias e a fidelidades vagamente políticas: de um lado, o de uma corredora popular, homenageada por uma estátua – que terá acabado destruída pela população que, alegadamente, não via nela a sua heroína –, mas cingida à sua terra, e, de outro, o percurso de uma atleta com uma capacidade invulgar que trocou a nacionalidade camaronesa pela francesa.
Talvez não haja melhor ilustração do desporto posto ao serviço da política e da construção da nação – onde ela se prognosticava particularmente difícil em vista das memórias ressentidas do apartheid, das clivagens raciais, da imensa assimetria económica e social, do pluralismo cultural, da coexistência da pobreza com o mais decantado cosmopolitismo – do que a estratégia de Mandela. Naquela África do Sul, ser capaz de alcançar o poder na base de uma identificação racial e do compreensível desejo de desforra de gravames pregressos, ser capaz de aproveitar o râguebi e ensaiar a reconciliação racial – tal o crivo com que se operava – é, segundo Thibault, uma aplicação notável de uma estratégia política de rara subtileza maquiavélica posta em marcha por Mandela. A audácia do cometimento contra o sentimento dos da rua, do seu partido – à margem do qual, ainda preso, também percorrera sozinho as veredas do diálogo com as autoridades do apartheid –, saiu recompensada, também por um resultado desportivo cuja probabilidade de repetição se diria escassa, e para o qual terá contribuído o doping do presidente ao envergar a camisola dos Springbok. A seleção sul-africana podia ter perdido a final do campeonato mundial de râguebi e o mérito da estratégia seria diferente, com a diminuição da aura de Mandela, a quem já não se atribuiria toda a sorte de qualidades expostas…
Na verdade, às qualidades pessoais de Mandela juntou-se a possibilidade de aproveitamento das polissemias potencialmente políticas inscritas no fenómeno desportivo e na consequente  possibilidade de desencadear e polarizar identificações e afeições politicamente úteis. Ao menos episódica ou temporariamente, porque, como nos é lembrado, dificilmente o desporto, apesar do seu enorme potencial de cimentação social, constitui, por si só, solução bastante para colmatar as clivagens nas várias sociedades.
A parte intitulada Clubes e atletas em sociedades africanas inicia-se com o texto de Augusto Nascimento relativo ao futebol em São Tomé e Príncipe que, pelo menos episodicamente, se quis “popular”. Porém, nem por isso as vitórias no futebol eram menos importantes, sobretudo para quem – atores ou espetadores – não tinha hipóteses de exercer um pequeno poder, tendo, em alternativa, bastas razões para tirar desforço por conta da sua “razão”. Ainda que suscitando uma inconfessada perplexidade nos dirigentes de São Tomé e Príncipe, a incessante doutrinação do “homem novo” não incutiu a racionalidade bastante para impedir a expressão descontrolada das emoções, para mais a propósito do que, em razão da ideologia, não tinha importância. Sem aparente motivo, a indisciplina grassou nos campos de futebol durante o regime de partido único imposto no arquipélago após 1975. Tão relevante quanto a indisciplina no campo, era a indisciplina fora dele. Sem o afirmar perentoriamente, a indisciplina em torno do futebol ter-se-á tornado frequente à medida que se diluía a rigidez do regime e enfraquecia a disposição repressiva das autoridades, feridas pela falta de autoridade moral, ou a relevância das sanções disciplinares.
Aurélio Rocha trata das relações entre associativismo, desporto e identidades moçambicanas construídas por demarcação dos colonos, primeiramente em reação às barreiras raciais impostas por estes, depois pela procurada afirmação da pertença moçambicana, por exemplo, no plano da literatura por aqueles que eram capazes de a criar a propósito do desporto, assim também tornado um domínio da disputa (possível) com o colonizador.
Anote-se, tais processos de afirmação identitária, igualmente observáveis noutras colónias, não eram lineares. Por força do que de apelativo tinham as novidades do mundo – entre elas, a desportivização das sociedades – a disjunção não era um processo totalmente determinado por colonos e colonizados. Se durante a apartação das associações de futebol, os do subúrbio aludiam a “chacais” para se referirem aos da baixa da cidade11, por quanto tempo a denominação vingaria, quando, depois de passarem nesse futebol dos “chacais”, moçambicanos do caniço se tornavam lendas na metrópole e no mundo?
Afinal, nem tudo era novo na passagem do tempo colonial para o pós-independência. Como já ficou indicado, a tentação de instrumentalização do desporto no regime colonial, sobretudo nos seus derradeiros anos, persistiu após as independências. Com eficácia variável, tanto governos coloniais como os regimes estabelecidos no período pós-colonial se serviram do desporto para alcançarem interesses políticos.
Pedro Pessula e Bernardo Manjate falam-nos do tirocínio e da vida de futebolistas do Clube Desportivo do Matchedje: a história do CDM relacionou-se estritamente com as possibilidades de recrutamento administrativo de jogadores, recurso relevante no período em que o clube representava a instituição militar. Para isso, angariava administrativamente os bons jogadores, recrutando-os como soldados. A tal subjazia uma visão instrumental da competição desportiva. E, não se o esqueça, das pessoas.
Na verdade, destituía-se o desporto da vituperada alienação do mercado para se incutir uma distorção na propalada igualdade, a observar, também, no novo desporto. O CDM não precisava de aliciar jogadores com cláusulas monetárias ou pelos seus méritos desportivos, porquanto os podia recrutar como militares. Como clube representativo do braço armado do “povo” não deveria perder. Assim, o futebol prolongava uma narrativa de heroísmo militar, que, como desejavelmente o futebol provaria, se sobrepunha a todo o desempenho social ou de outras solidariedades horizontais. A prática desportiva tinha de ser mais uma montra da superioridade, também desportiva, de instituições patrióticas, como as Forças Armadas.
A visão patrimonial dos jogadores e, implicitamente, das pessoas cedeu com a adoção da democracia representativa e da economia de mercado na década de 1990. Porém, o desporto tornou-se mais um campo em que a inserção de África no mercado global se processou de forma desigual, com prejuízo para o crescimento do desporto in loco. Para Bonomar Macuácua, as migrações desportivas configuram um caso de migrações determinadas pelas desigualdades causadas pelo sistema-mundo capitalista, indutor de uma globalização que constitui uma forma de neocolonialismo. Contudo, apesar de revisitar o lastro negativo da “fuga de músculos”, o autor considera que África, centro produtor de “talentos” – tal a denominação desta mão-de--obra especializada –, deve ser capaz de reverter os efeitos danosos da “fuga de músculos”, estruturando políticas para canalizar recursos daí advindos para promover a sua atividade desportiva e, dessa forma, melhorar as condições económicas e sociais adjacentes à prática desportiva.
Por fim, o texto de Hervé Kouamouo descreve práticas futebolísticas de imigrantes africanos na Europa. Alardeando, segundo o autor, uma relativa organização, esse futebol popular é veículo de identificação entre os africanos e, simultaneamente, um condutor da ligação simbólica com a terra de origem. Não se dirá que assim não é, mas seria uma concessão a um essencialismo estéril não ponderar a hipótese de que as pessoas mudam e de que os laços se diluem… Por isso, glose-se para o caso do desporto a pergunta deixada a propósito da cultura popular: a aspiração de cosmopolitismo e de vitórias num domínio particular, mas prezado, da vida não se revela mais importante do que o essencialismo velado e enviesado da incompreensivelmente prescritiva “identidade africana” ultimamente reivindicada?


Augusto Nascimento*

Aurélio Rocha**

1 Durante anos este grupo dedicou-se ao estudo do desporto nos países de língua oficial portuguesa. Para uma visão sumária dos estudos sobre a história do desporto nesses países, veja-se Marzano, Andrea, Nascimento, Augusto (2013), “O esporte nos países africanos de língua portuguesa: um campo a desbravar”, Tempo 17, 34: 53-68.
2 O guião das entrevistas foi delineado por Aurélio Rocha e as mesmas foram efetuadas por João de Sousa.
3 Oliveira, Ângelo de (1998), Isto de futebóis…. Maputo: Ndjira.
4 Roletta, Paola (2011), Finta Finta. Maputo: Texto Editores.
5 Caldeira, Renato (2003), Coluna, Monstro Sagrado. Maputo: R. Caldeira/Edisport; (2010), Estrelas de sempre. Lendas do futebol moçambicano. Maputo: R. Caldeira/SGL; e (2016), Área de Rigor. Maputo: R. Caldeira.
6 Graziano, Alberto, Pessula, Pedro e Tembe, Vicente (2008), O passado, o presente e as perspectivas para o desenvolvimento do desporto em Moçambique, Maputo, Ed. de autor.
7 Pereira, Carlos, Gonzalez, Luís (2016), História da AAM – Associação Académica de Moçambique. Vila Nova de Gaia: Calendário de Letras.
8 Domingos, Nuno (2012), Futebol e Colonialismo. Corpo e Cultura Popular em Moçambique. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.

9 Acerca da sobrevivência do leão no emblema do Palmeiras da Beira, ex-Sporting da Beira, veja-se a menção no livro de memórias de Renato Caldeira (2016), Na área de rigor, s. l, Editora O Matolense, p. 119.
10 As ancoragens das marcas ao desporto datam do tempo colonial. Cite-se como exemplo a associação da cerveja Cuca à realização dos campeonatos populares na Angola colonial, cf. Bittencourt, Marcelo (2017), “O futebol nos musseques e nas empresas de Luanda (1950-1960)”. Análise Social, 225, LII (4.º), pp. 874-893.

11 “Então vais jogar com os chacais?”, tal a pergunta feita a Hilário quando em 1953 ele se mudou para um clube da baixa, o Sporting de Lourenço Marques, cf. Domingos, Nuno (2012), Futebol e colonialismo. Corpo e cultura popular em Moçambique, Lisboa, ICS, p. 192.

* Centro de História da Universidade de Lisboa.
** Faculdade de Letras e Ciências Sociais – Universidade Eduardo Mondlane.

AFRICANA STUDIA
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DOI Africana Studia n.º 35: https://doi.org/10.21747/0874-2375/afr35

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